Por que Neymar não jogou a Copa América? Publicação em Jornal da UFMT

Você já “torceu o pé”?

É bem provável que sim… Mas o que de fato é torcer o pé? Qual a ciência envolvida
nessa lesão? Descubra tudo sobre ela, que foi a última sofrida pelo atleta de futebol
Neymar Jr., na matéria escrita por Daniel Bohn, acadêmico de Medicina de outra
universidade (UFPel) que é um verdadeiro entusiasta da Medicina Esportiva! Aliás, além de
trazer seu conhecimento de muito longe, ele é campeão brasileiro de Anatomia e,
portanto, merece sua atenção!

Se sim, saiba que há mais de 90% de chance de ter sido uma Entorse lateral do
tornozelo, segundo grande parte dos livros sobre o assunto. Caso você seja praticante de
esportes, as chances são ainda maiores, pois essa lesão é a mais comum entre todas as
injúrias desportivas. Cabe lembrar, ainda, os outros dois tipos de entorses do tornozelo,
bem menos frequentes: o Medial e o Alto.

A lesão é tão comum que foi o motivo da ausência do atleta Neymar Jr. na Copa América de 2019.

Entenda: no dia 6 de junho,em partida amistosa entre Brasil e Qatar, o camisa 10 sofreu uma carga do adversário em sentido médio-lateral em seu membro inferior direito (MID), imediatamente após driblá-lo e adiantar a bola o pé direito. Dessa maneira, ao aterrissar com o mesmo pé no solo, ocorreu subitamente a clássica combinação de movimentos que resultam na lesão: inversão plantar (virar a “sola” do pé “para dentro”) e flexão plantar (ficar na “ponta dos pés”). Além disso, a energia do trauma foi potencializada pelo apoio de todo o peso do atleta unicamente sobre seu MID na aterrissagem, o que certamente tornou o caso ainda mais preocupante:

 

Imagem 1: Foto tirada de vídeo do Youtube mostrando a lesão.  https://www.youtube.com/watch?v=qLvzgkuiNhw Acesso em 08/06/2019 às 18:15h

Falando um pouco sobre a anatomia da lesão, sabe-se que a região lateral do
tornozelo possui estabilização estática e dinâmica. E estabilização dinâmica ocorre por
meio dos músculos, em especial os fibulares (longo e curto). Já estabilidade estática se
dá por meio do ligamento colateral lateral (LCL), o qual é constituído por três feixes
(imagem 2). Em relação à lesão, os mais importantes são: ligamento talofibular anterior
(LTFA), lesionado em 70 – 85% de todas as torções, e o ligamento calcaneofibular
(LCF). O LTFA é o mais fraco, seguido pelo LCF, por isso ele é mais comumente
lesado. Aliás, em dois terços de todos os casos se rompe apenas o LTFA. Já a segunda
lesão mais comum, em aproximadamente 20% dos casos, é uma ruptura combinada de
LTFA e LCA. O ligamento talofibular posterior (LTFP) é o mais posterior dos três
feixes do LCL do tornozelo e é raramente rompido, ocorrendo apenas em traumas muito
severos. Outro fator anatômico relevante é o formato do osso tálus, o constituinte ósseo
do pé que forma a articulação do Tornozelo. A tróclea do tálus é mais estreita na parte
posterior. Então, quando em flexão plantar (“na ponta dos pés”), é justamente a parte
posterior quem está fazendo o encaixe articular. Nessa situação, além dos ligamentos
estarem estirados, há menor congruência (contato entre os ossos) da articulação, o que a
torna menos estável e mais suscetível às entorses laterais.

 

Imagem 2: adaptado por Daniel Bohn de NETTER, Frank H. Netter-Atlas de anatomia humana. Elsevier Brasil, 2008.

Em se tratando do mecanismo da lesão, tem-se que, assim como os músculos
eversores (fibular curto e longo, que apontam a sola do pé para fora), os dois ligamentos
da região lateral citados (LTFA e LCF) agem impedindo a inversão e a flexão plantar
excessivas. Portanto, tal mecanismo ocorre justamente com a ocorrência simultânea e
súbita desses dois movimentos: inversão e flexão plantar. Dessa forma, no caso do atleta
Neymar Jr., a lesão ocorreu pelo fato de ele ter recebido uma força aplicada em sentido
médio-lateral que o deslocou e o fez aterrissar de maneira inadequada. O resultado foi
exatamente uma inversão excessiva do pé, somada a flexão plantar. Tudo isso de
maneira súbita. Logo, sucedeu uma entorse lateral do tornozelo, com lesão ligamentar
de LCL, que a mídia não veiculou o(os) feixe(es) específico(os) acometido(os).

Imagem 3:  NETTER, Frank H. Netter-Atlas de anatomia humana. Elsevier Brasil, 2008.

 

O diagnóstico da lesão é realizado por meio de testes para detecção de
instabilidade. Eles devem ser realizados apenas de 4 a 7 dias após o trauma, depois de
descartada hipótese de fratura por radiografia. Os principais testes semiológicos para
detecção da instabilidade lateral são: o teste da gaveta anterior do tornozelo (não
confunda com aquele mais famoso e de mesmo nome, realizado no joelho!), que avalia
o LTFA, e o teste da inclinação talar, que avalia tanto o LCF quanto o LTFA (imagem
3). Vale lembrar que há instabilidade apenas nos graus de injúria II e III, em
classificação que vai do I ao III.

Imagem 4: HANSEN, John T. Netter-Anatomia Clínica. Elsevier Brasil, 2015.

Destaca-se, também, o diagnóstico diferencial dessa lesão: a Fratura de Base do
V Metatarso, que foi a última lesão de Neymar Jr. Ambas são causadas pelo mesmo
mecanismo (inversão + flexão plantar súbitas) e, para fazer a diferenciação, é verificado
se há dor quando realizada digitopressão na base do quinto metatarso, além da
investigação de fratura na radiografia do pé.

Em relação à prevenção desse tipo de lesão, tem-se, segundo estudos, que os
exercícios proprioceptivos são o método mais efetivo. A propriocepção é considerada
por alguns como o sexto sentido, podendo ser definida como a capacidade que nosso
corpo tem de reconhecer sua própria localização espacial por meio de uma série de
estruturas nervosas. Portanto, exercícios como marchar de olhos fechados sobre
diferentes apoios (balancim, prancha, colchonete, cama elástica e demarcação no chão)
estimulam essas vias sensoriais proprioceptivas, contribuindo para o desenvolvimento
de um melhor controle postural e, consequentemente, prevenindo lesões nas articulações
mais utilizadas para isso, como a do tornozelo.

 

Referências:

GREENE, Walter B. (Ed.). Netter ortopedia. Elsevier/Saunders, 2007.

PETERSON, Lars; RENSTRÖM, Per. Sports injuries: their prevention and treatment. Human Kinetics Publishers, 2000.

WALKER, Brad. The anatomy of sports injuries. North Atlantic Books, 2007.

Deixe um comentário