Mais um texto sobre “Erros Anatômicos”. Hoje, sobre Joelho – Ligamento Cruzado Anterior.
Por certo você já ouviu falar que algum atleta, um conhecido ou até mesmo você mesmo teve uma lesão no Ligamento Cruzado Anterior do Joelho.
Entenda porque o joelho, apesar de permitir atividades de locomoção e esportes, possui erros anatômicos. Além disso, compreenda o por que desses erros e como prevenir lesões decorrentes dessa anatomia.
Descubra o motivo pelo qual esportistas de todos os níveis, desde atletas olímpicos até os atletas das peladas do finais do semana sofrem com lesão de joelho, especialmente do Ligamento Cruzado Anterior. Aqui vai uma lista de atletas que já sofreram com essa condição:
- Zico, Ronaldo Fenômeno, Daniel Alves, Ibrahimović, Nilmar, Tiger Woods (Golf), Klay Thompson (NBA), entre outros. A lista contém apenas homens, mas mulheres estão sob risco de 2 a 4 vezes maior.
Para entender, é necessário retomar aos primórdios, muito antes de serem imaginadas competições esportivas com atletas bípedes impondo intensas cargas sobre joelhos em mudanças de direções.
Durante a migração dos primatas primitivos de selvas fechadas para a savanas, o uso de quatro membros para a marcha (caminhada) deu lugar ao bipedismo (marcha bípede). Esse marco permitiu a locomoção em maiores distâncias, com maior velocidade e economia energética. Além disso, foi ampliado o campo de visão e as mãos passaram a estar livres, permitindo manuseio de objetos. Apesar das diversas consequências evolutivas, foquemos apenas na questão da mudança de seres quadrúpedes para o bipedismo e como isso ocorreu.
Para se tornarem bípedes os primeiros primaras tiveram que obter adaptações anatômicas, pois com aquela biomecânica a marcha não era eficiente. Observe um macaco tentando se locomover de forma bípede:
- A marcha dos macacos com pernas e joelho flexionados gerava muito deslocamento do cento de gravidade do corpo, o que significava maior gasto de energia pela ação dos músculos para equilibrar o centro de massa a cada passo.
- Macacos caminhavam com joelho flexionado e varos (“pernas abertas para fora”, o que é o oposto de valgo – joelhos em “X”). Em breve voltaremos ao conceito para explicar como isso, o joelho ser mais valgo, contribui para mais lesões.
Adaptações nos humanos
- a pelve passou a ser menos larga, permitindo um menor deslocamento do centro de massa. Obs.: inclusive, o ser humano tem mais problemas em relação a partos difíceis pois proporcionalmente sua pelve é menor – mais estreita.
- Em vista do parto e dos riscos de uma pelve pequena, houve um limite em relação ao estreitamento pélvico; dessa forma, os joelho sofreram uma angulação para valgo. Esse ângulo é chamado de ângulo Q.
*Mais à frente vamos observar como esse adaptação para o valgo sobrecarrega ainda mais o ligamento cruzado anterior – uma pequena fita que estabiliza o joelho em diversos movimentos.
Vale citar que todo o processo de adaptação para o bipedismo ocorreu de maneira extremamente rápido evolutivamente falando (o.5 milhões de anos), devido às grandes vantagens que essa mudança proporcionou (o que pode ser assunto de outro texto/vídeo). Essa evolução rápida nos fez andar de maneira bípede sem que ocorressem mutações que tornassem as estruturas do joelho fortes o suficiente para resistir às atividades de muitos esportes da atualidade. Apesar de ter ocorrido um espessamento em capsulas articulares e ligamentos, não foi o suficiente para que conferissem uma maior segurança em sobrecarregar o joelho, em especial nos movimentos que exigem do LCA – ligamento cruzado anterior, especialmente quando passamos a andar com o joelho mais estendido, que falaremos a seguir.
- Para uma maior distância a cada passo e resolver o impasse da variação do centro de massa, o joelho que era mantido em semiflexão, passou a sofrer extensão completa.
Devido a isso, o ligamento cruzado anterior, o principal responsável para estabilizar o joelho de forças rotacionais quando em extensão, passou a ser muito mais recrutado, sendo exposto a forças às quais ele não foi “projetado”, pois o joelho anteriormente estava em semiflexão, movimento onde mais ligamentos realizam a estabilização. Em síntese, o joelho não foi projetado (e não sofreu forças evolutivas suficientes para se adaptar) para ser sobrecarregado com forças rotacionais enquanto em extensão, o que ocorre frequentemente nos esportes:
- Então, além do maior grau de extensão, o joelho também passar a ser forçado a um maior estresse valgo, esse que também sobrecarrega o LCA, bem como o Ligamento Colateral Medial (LCM). Cabe citar que a lesão do LCM, apesar de menos grave que do LCA, é a lesão ligamentar mais comum do joelho.
- Inclusive, por terem um quadril mais largo (para a passagem do bebê no parte), as mulheres biomecanicamente angulam mais seus joelhos em valgo, de maneira a tentar variar menos o centro de gravidade. Esse maior ângulo Q (em valgo) aumenta o risco de lesões de LCA de 2 a 4 vezes em mulheres, sob as mesmas condições que os homens, em qualquer esporte.
- Apesar dessas condições (escritas acima), o joelho dá conta extremamente bem de atividades cotidianas. O novo arranjo permite caminhadas e corridas tranquilamente. Entretanto, o risco está em rápidas modificações de direção, como em muitos esportes, pois é colocado muito estresse sobre estruturas que evoluíram rapidamente de uma marcha com 4 membros, com joelhos que ficavam sempre em flexão para a marcha bípede (o dobro de carga sobre a articulação) somada a movimentos rotatórios bruscos com alta energia e ainda com o joelho em extensão
- Apesar do constante aprimoramento da medicina , preparação física, fisioterapia e tecnologia esportiva, os esportes competitivos estão promovendo ainda maior impacto e forças sobre essa articulação. Os atletas estão evoluindo em suas capacidades físicas, vide os recordes e intensidades cada vez maiores em jogos de futebol por exemplo. Isso gera maior impacto em estruturas que tem o papel de amortecem essa carga, como meniscos e cartilagens, e também gera maior demanda aos ligamentos e tendões, que tem a função de manter o joelho estável, como o caso do ligamento cruzado anterior. Uma consequência direta disso é o gradativo aumento da incidência da ruptura do LCA em atletas jovens, uma situação antes rara que hoje é usual e se apresenta como um desafio à rotina dos cirurgiões ortopédicos das categorias base dos clubes de futebol.
Apenas isso já seria o bastante para nos causar problemas no joelho, mas há agravantes. Mais fatores anatômicos que predispõem:
- Os rompimentos não deixam os ligamentos/tendões mais fortes. O que é ocorre é o oposto (mais fracos), tornando-os ainda mais suscetíveis, formando um círculo vicioso
- Esses tecidos (ligamentos) possuem pobre vascularização, que é quem leva nutrientes para sua regeneração.
- Plus anatômico avançado: o LCA está dentro de uma cápsula, isolado da articulação, o que impede de ser nutrido pelo líquido sinovial. Eles ficam em legítimos túneis no meio da articulação (são intra-articulares mas extrasinoviais – fora do líquido sinovial).Para piorar, em sua ruptura, a hemartrose (edema de sangue causado pela ruptura) afasta as 2 metades, tornando a regeneração ainda mais improvável. Em síntese, o sangue fica no meio do túnel, impedindo os 2 lados de se aproximarem, o que faz a cirurgia ser a única opção para atletas, dada a função imprescindível dessa pequena fita para a estabilidade de todo Joelho.
Falamos aqui muito de questões agudas e ligadas ao esporte moderno. Porém, vale lembrar que padrões de vida modernos também desafiam a ciência básica (anatomia, fisiologia, patologia,…) dessa articulação.
- Sedentarismo: articulações tem como pretexto o movimento e inclusive o impacto (dentro de limites fisiológicos) para manter sua saúde e bom funcionamento, e com o joelho não é diferente.
- Obesidade: além de trazer carga adicional sobre a articulação, também possui caráter inflamatório, esse que é o mesmo da osteoartrite (popularmente conhecida como artrose), cuja fisiopatologia é inflamatória.
- Envelhecimento: o aumento expectativa de vida repercute em maior tempo de cargas ao joelho, podendo ser feita a analogia com o pneu de um carro. Além disto, temos a diminuição, inerente ao envelhecimento, do funcionamento de componentes biológicos responsáveis pela manutenção celular, que também figuram no joelho.
Prevenção
- Fortalecimento e Equilíbrio Muscular (ex.: músculo vasto medial da coxa fortalecido, bem como abdutores do quadril, atuam no sentido contrário do movimento em valgo do joelho)
- Praticar Esportes com equipamentos/calçados adequados (ex.: não utilizar chuteiras de grama natural, pois o gramado sintético possui maior aderência, favorecendo forças rotacionais com joelho estendido)
- Manutenção do Peso (menos impacto sobre joelho)
- Praticar atividades Física com regularidade (maior saúde articular e propriocepção ao realizar esportes)
- Especificamente para o futebol, a utilização do protocolo FIFA 11+, facilmente encontrado, diminui de 30 a 50% o número de lesões, incluindo a prevenção da temida lesão do ligamento cruzado anterior.
Referências:
– Lents, Nathan H. Human Errors: A Panorama of Our Glitches, from Pointless Bones to Broken Genes. Houghton Mifflin Harcourt, 2018.
– Moore, Keith L., Arthur F. Dalley, and Anne MR Agur. Clinically oriented anatomy. Lippincott Williams & Wilkins, 2013.
– Thompson, Jon C. Netter’s Concise Orthopaedic Anatomy E-Book. Elsevier Health Sciences, 2015.
– https://www.youtube.com/watch?v=5RX7Q4uczZw acesso em 09/05/2020 às 22:00 h